Capítulo I - Infância
Às vezes fazemos coisas e não sabemos porque. Às vezes somos empurrados a agirmos de contra nossas vontades e bem-entendimento. Somos amarrados a cadeiras enferrujadas, assistindo a carrascos, suas faces ocultadas por negros mantos, apenas deixando os olhos aguados e morbidos a serem vistos e temidos por nós. Há mofo nas paredes, desprendendo-se, há gosma verde pendurada do teto. Ratos e baratas correm pelos corredores e aranhas e morcegos sobrevoam nossas cabeças. Despacham os inconvenientes nos bueiros imundos e penduram-os nos galhos mortos de árvores pretas. É possível ouvi-los gemendo por socorro e misericórdia com um último fio de voz. Fórmulas e regras são jogados até nós e precisamos engoli-los de qualquer jeito, sem que façam sentido algum. Somos reprimidos ao fazer o mínimo de barulho e ao ameaçar um sorriso. Procuramos uns aos outros por ajuda e desespero e ninguém tem a resposta. Independente do clima, está sempre frio e úmido. O mundo atrás das grandes grades góticas enferrujadas não nos afeta. Aprendemos a ser racionais e sistemáticos. Cada aluno novo que ingressa nesse submundo é treinado para virar um tirano do mundo moderno, sem idéias próprias, sem pensamentos, apenas um diploma de peso, um ar superior e arrogante e intermináveis fórmulas e regras na cabeça.
Neste conto de maldade inabalável, contar-lhes-ei o que fiz para mudar meu destino.
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Há muito tempo atrás, em outras terras e em outras dimensões, cresci e vim a amar este país. Atravez das águas, Regium Campus dividia-se dos outros continentes. Destacava-se pelo verde abundante e animais exóticos, era um país para famílias, crianças e aposentados. O meio de transporte principal era a bicicleta ou os próprios pés; leite, carnes, pães e frutas, juntos com as correspondências, vinham diariamente para nossos casas, logo de manhã. Paisinho pitoresco, retirado de um conto de fadas, com casinhas brancas de telhados vermelhos e janelas verdes ou azuis. Bancos de tocos convidativos enchiam as praças e fontes as embelezavam.
Foi neste país que fui à escola, aprendi a somar e a soletrar. Passei minha infância tranqüila e calma, assistindo a passarinhos banharem-se nas tardes quentes. Aprendi não apenas aquilo que deveria na escola primária, mas também desenvolvi meu próprio raciocínio e amei muito a vida e, principalmente, a entendê-la. Mas só compreenderia, realmente, quando fosse para o Instituto de Ensino Superior, na capital, em Andrômeda. É claro que "Ensino Superior" não era muito superior, aprenderíamos economia, alquimia, astronomia, história e literatura. Viraria um intelectual, entraria para a elite e faria uma diferença no mundo. Lembro-me de mim mesmo, miudinho, aos nove anos, esquematizando minha vida.
No ano seguinte, em meu aniversário, lembro-me de ter estado no trêm que sobreandava as águas, dizendo adeus para meus familiares e amigos, com meio corpo para fora da janela, acenando sorridente. Mamãe lacrimejava de orgulho, papai retribuia-me meu sorriso. Psrecia que o tempo havia parado naquele oasis de sentimento. Aquele foi o momento mais feliz da minha vida e a última em que Regium Campus.
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Voltei a encostar no banco recoberto de couro, satisfeito comigo mesmo. Até aquele momento não havia percebido o passageiro que dividia a câmara comigo. Sujeito bizarro, mal-arrumado e sujo. Não parecia saudável e muito menos sano. Até na ingenuidade da minha infância senti medo. Mas, mais que medo, senti curiosidade.
- Por que o senhor está tão sujo? - perguntei rapidamente, sem pensar.
- Porque fazem anos que não me banho. - ele me respondeu, com um sorriso torto, cehio de dentes amarelos igualmente tortos.
- Ah...
Aparentemente, o passageiro se interessava tanto por mim quanto eu por ele. Estudava-me profundamente com seus olhos cansados, eu fitava-lhe em resposta, admirado. Era a primeira vez que via algo feio, a primeira vez que via algo sujo que não fosse a terra.
- O que um garotinho como você faz indo a Andrômeda? - perguntou-me de repente.
- Vou à escola.
- Mas é tão pequeno...
- Eu já tenho dez anos! - rebati com força - E o meu lugar
é o Instituto de Ensino Superior!
Ele paralisou-se quando ouviu para onde ia. Piscou algumas vezes e voltou a sorrir, dizendo:
- Você não quer ir para lá.
- E por que não quereria?
- Ora... - começou devagar - Se você acha que eu sou sujo, nem imagina o que lhe espera.
- Não é! Lá é o lugar mais limpo de toda Andrômeda!
- Já foi a Andrômeda? - perguntou irônico.
- Não...
Agora estava abalado. Com certeza esse homem sabia mais sobre a cidade e sobre minha escola que eu. Agora começava a ficar nervoso e cheio de dúvidas. Os bancos já não pareciam tão macios e o colarinho de minha camisa começou a apertar. Tinha que perguntar...
- O senhor já estudou no Instituto?
- Sim - já não sorria mais - Mas fui expulso.
- Por quê?
- Porque sabia demais.
Arregalei os olhos em espanto. O que aquilo poderia querer dizer?
- Eu não lhe direi mais nada, vou deixar para você decidir o que acha da sua escola - falou, percebendo minha agonia - Só não julgue por primeiras impressões.
***
Não nos falamos pelo resto da viagem, onde eu tive tempo suficiente para me desesperar e recompor cinco vezes. Enquanto isso, meu colega dormia. O queixo sobre o peito e as mãos nos bolsos. Ele parecia estranhamente atento e pronto a atacar a qualquer instante. Sujo, frio, irônico, dentes tortos, porém confiável e bizarramente protetor. A sua presença me acalmava, como fazia meu pai, nos dias de chuva, neste momento tão complexo de minha vida.
Fechei os olhos e me concentrei no som da fumaça e dos trilhos do trêm. Antes de eu perceber, estava dormindo.
by Deborah Happ
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Espero que tenham gostado do primeiro capítulo da minha ficção-científica (que está sem nome e parada há um tempão). Comecei a escrevê-la em uma da milhares de vezes em que fiquei para fora da primeira aula de química, por me atrasar. Foi a única vez em que fiz algo de verdadeiramente útil. Esse é meu bebê e um dos meus maiores orgulhos.
Beijos!