28.8.17

Todas as mulheres da minha família eram loucas


Eu passo os dias desviando dos moradores de rua do centro da cidade. Tem uma moeda, senhora? Por favor, senhora! Nos piores dias puxavam minhas roupas, agarravam meus braços. Não tenho, senhor, me desculpe, não tenho nada. Loucos, todos eles. Coitados, loucos.

Minha vó era louca, me diziam. Tirava as roupas no meio da rua, me diziam. Via coisas, me diziam, estava sempre do lado de lá. Você é igualzinha sua vó, me dizem sempre. As mesmas mãos, o mesmo nariz, a mesma personalidade. Agora que cortou o cabelo, nossa, idêntica. Se ela vivesse numa época mais libertária, ela seria igualzinha a você, me dizem sempre. 

Quanto tempo vai levar até eu também ficar louca?

Eu queria ser dessas pessoas cujo maior medo não é enlouquecer. Entrar em mim mesma tão profundamente que ninguém mais consegue acessar. Virar um jacaré com a barriga tão estufada de suas próprias ideias que quase chega ao ponto de explodir. Quase. Só não explode por compaixão dos funcionários do asilo que olham de longe, passam a mão na cabeça, dizem que vai ficar tudo bem, ela passa os dias dentro da própria cabeça, falando umas coisas que ninguém sabe direito.

Afinal, quais são os limites da mente?

Eu sonhei com você ontem à noite. Não era um sonho, na verdade. Era uma alucinação provocada pelo chá do xamã da floresta. Era uma bebida sagrada, me disseram. Te abre pra mundo novos, me disseram, novos entendimentos de você mesmo.

Agora eu estou convencida de que vejo o futuro.

Eu te vi claramente ontem à noite. Estávamos fodendo como se não houvesse mais nada no mundo. A voz na minha cabeça me disse que você iria me procurar. 

Estou esperando. 
Eu vejo o futuro.

O chá do xamã da floresta também me disse que eu vou enlouquecer. Isso é só o primeiro passo, a voz na minha cabeça me disse. Você vai viver em completo isolamento e ninguém vai te reconhecer, perdida na sua própria mente. 

Estou esperando. 
Eu vejo o futuro.

22.8.17

A cidade de São Paulo desaba sobre a gente

O Memorial da Resistência deve ser o pior lugar de São Paulo.

Talvez até seja do mundo inteiro. Antes mesmo de entrar no museu vemos os monstros. Eu moro no centro há três anos e nunca tinha visto ninguém fumando crack. Nem à noite, quando desço do ônibus no Anhangabaú. Devo ser mesmo tapada pra caralho. Os zumbis, enfim, continuam populando os arredores do museu, sentam nas beiradas, são a vista das janelas que insistimos em não ver.

O Memorial da Resistência deve ser o pior lugar de São Paulo.

Do lado de dentro, a memória de uma centena de presos políticos de outros tempos. Suas palavras estão inscritas nas paredes e sua energia continua pesando no ar. Tudo lá dentro é insuportável. No quarto andar, uma exposição do Mauro Restiffe retratava o cotidiano do tempo dos presos políticos. Achei uma merda todas aquelas fotos de grávidas granuladas e mal enquadradas. Fotos de outros tempos que não somam nada, não dizem nada.

O Memorial da Resistência deve ser o pior lugar de São Paulo.

Estudar artes me deu o privilégio de admitir que não gosto de coisas consagradas. Não gostou, por quê, Deborah? Porque tenho mestrado na USP, porra. O mestrado na USP na verdade só serviu mesmo pra criar essas casca grossa e reiterar toda essa presunção. Fez bem, até. Bons frutos. O Mauro Restiffe, por outro lado, deveria é sentir vergonha de ser exposto no antigo prédio do DOPS. Eu teria.

O Memorial da Resistência deve ser o pior lugar de São Paulo.

A gente tenta, tenta, tenta ressignificar as coisas e não consegue. Os fantasmas ainda estão lá. Os fantasmas, independentemente de quantos exorcismos fizermos, os fantasmas talvez fiquem para sempre. Talvez eu mesma nem goste mais de fotografia.

1.8.17

Cinco horas da manhã

Acordei no susto com uma mosca voando pra dentro do meu ouvido. Ficou presa ali. Pus a unha pra tirar e não alcancei. A senti remexendo as perninhas dentro do meu túnel do carpo pelo resto da manhã.

Meu corpo é tão inteligente quanto o de uma ostra, será? Quanto tempo leva pra ela se transformar numa pérola de cera dourada? Quanto tempo leva pra ela botar ovos e as larvas cavocarem até meu cérebro? Vou ter alucinações? Vou me tornar iluminada? Vou trazer mensagens dos mortos até que minha mente inteira seja corroída pelas larvas de uma mosca que um dia entrou sem querer no meu ouvido?

Talvez eu esteja mesmo ficando louca. Limpando o ouvido demais. Acordando com zumbidos de insetos numa casa recém-dedetizada onde há dias não vejo sequer uma joaninha.

Ou talvez seja mesmo minha avó morta zumbindo na minha orelha às cinco horas da manhã. A vovó, meia índia, meio bruxa.

É hora de acordar, filhinha. Ela diria com as mãos cheirando a coentro e louro. Vai fazer comida pra alimentar de luz esse povo todo que morre de fome.