31.10.15

Preto

Estava um dia quente. Muito quente. Mais que o normal. Sentei embaixo de uma árvore e tentei descansar um pouco. Acho que consegui dormir um pouco, não sei quanto tempo passou. Quando acordei, com um baque alto de alguma coisa caindo no chão, o mundo era um lugar completamente diferente.

Me assustei, fui olhar o que tinha caído. Era uma cobra. Só poderia ser uma cobra. Longa, musculosa, preta. Tinha cinco membros esguios em uma das pontas. Como era possível? 

Devia ser um sonho, mas tinha certeza que estava acordado. Talvez fosse uma alucinação por causa do calor. Resolvi aceitar o que era lógico. O braço decepado à minha frente devia ser de algum escravo castigado. Estranhei que não sangrava.

Mal tive tempo de me recompor da minha conclusão óbvia quando outro braço caiu do céu. Tão preto e tão forte quanto o primeiro. Também não havia traços de sangue. Em seguida caiu uma perna. Depois outra perna. Identifiquei a árvore de onde os membros caíam. Era justamente aquela onde eu descansava. Naquele momento, comecei a ficar preocupado. Caiu um tronco, forte e preto.

Por último caiu uma cabeça. A terrível cabeça.

As partes do corpo começaram a se unir lentamente. Pernas e braços que eram serpentes infernais indo de encontro ao torso. Arrastavam-se lentamente. Quando chegaram perto, encaixavam-se como se fossem pedaços de um autômato do submundo. Rodavam até atingir a posição correta. Inteiramente montado, levantou-se para sentar. Os braços se esticaram, recolheram a cabeça do chão. Ergueram-na com delicadeza e colocaram-na no lugar. Esticou por um instante.

Os olhos se voltaram para mim, aqueles terríveis olhos de fogo.

Juntei toda a coragem que ainda me restava e perguntei quem era ele.

Ele sorriu, dentes muito brancos no rosto escuro:

– Eu sou o diaaaa–

Não o esperei terminar de falar. Levantei o mais rápido que eu pude e me apressei para a casa do seu bisavô. Por muito tempo ainda ouvi sua risada demoníaca atrás de mim.

– Que racista, vô! – ele falou, estupefato, voltando a assistir TV do sofá da sala dos avós.

– Pois foi assim que aconteceu.

28.10.15

Senta e faz o que te mandarem. Ninguém te perguntou o que você quer. Não tem porque não quis, porque nunca foi atrás. Não dá opinião no que não entende. Não inventa, mas também não fica parada. Tem que ser pró-ativa. Tem trabalho pra caralho pra fazer. E você fica aí, enfiando as ideias e a água que insiste em sair do olho nesse caderninho. Procura outras saídas pra tentar ser feliz e só se fode. Carrega essa culpa toda por quê? Tem tudo que podia querer. Aceita e engole. Está até mais magra. Todo mundo elogia. Não está conseguindo comer por quê? Cada um sugere uma saída diferente. E você? Quer o quê? Fica quietinha, faz seu trabalho. Foca nas prioridades. E produz, produz, produz pros outros. Faz o que o que mercado quer. O que você tem a dizer? Você não tem nada a dizer. Vive vazia, vazia, vazia. Vive procurando alguma coisa pra ocupar o lugar.

Não tem nada a dizer.

Vive procurando sarna pra se coçar. Seus problemas não existem. Olha quanta gente tem problema de verdade. Você nem consegue lembrar dos seus próprios problemas. Não consegue se organizar. Não consegue lembrar nada. Não consegue organizar esse monte de ideia que mora na sua cabeça. Pensa tanto e não chega a lugar nenhum. É um grande nada. Não consegue. Não consegue. Não consegue.

Você não tem nada a dizer. É um grande vazio, vazio, vazio.