6.12.17

12 horas

Acordei antes do despertador. Nunca estive tão disposta.

12 horas pra te ver.

Coloquei meu melhor vestido e o batom vermelho.

11 horas pra te ver.

Perdi o ponto do ônibus pro trabalho pensando em você.

10 horas pra te ver.

Não estou conseguindo nem ler meus e-mails.

9 horas pra te ver.

O café está me deixando mais agitada que o normal.

8 horas pra te ver.

Vi 14 listas de bobagens na internet pra passar o tempo.

7 horas pra te ver.

Mal consegui almoçar.

6 horas pra te ver.

Terminei o trabalho rápido demais, vou ter que inventar novos jeitos de passar o tempo.

5 horas pra te ver.

Será que vão perceber se eu me masturbar no banheiro da firma?

4 horas pra te ver.

Mais um café pro tempo passar mais rápido. Gastrite.

3 horas pra te ver.

Quanto tempo isso vai levar pra me consumir inteira?

2 horas pra te ver.

Atravesso a rua correndo.
Não vi o ônibus.

Outra vida pra te ver.

1.12.17

Cacos de Vidro

Te deixei sozinha por um minuto. Vou lá fora, eu disse. Você fica bem, né? Estava tudo bem, tudo bem. Daqui a pouco escuto a explosão. Os estilhaços de vidro foram arremessados ao meu redor, passaram de raspão, mas nenhum me acertou. Eu me protejo, me dizem, eu sempre sei me proteger. Entrei pro lado de dentro, as janelas altas estavam com o vidro quebrado, tudo estava no chão. Ninguém estava ferido.


Só você.


Um caco enorme se enfiou do lado esquerdo da cabeça e o sangue escorria da orelha até o ombro. E eu precisava te levar pro hospital e eu não sei dirigir e eu te deixei pra dentro pra te proteger e você foi atingida e quem dirige sempre é você é você é você e eu te devo tudo e não consigo te proteger. Não adianta nada eu ser assim tão forte se eu não consigo te proteger. Não consigo te levar pro hospital, não consigo te manter a salvo nem dos seus próprios estilhaços.

8.11.17

Kali Durga

Tá na moda falar que é benloka, né? Parece uma coisa ótima. Exaltar os próprios desequilíbrios emocionais. Falar da terapia e de todas as drogas que toma pra tentar se manter em paz (eu mesma passei dos estabilizadores emocionais pro álcool pras coisas que a terra dá). Tenho depressão, ansiedade, TOC, transtorno bipolar, mas, principalmente, sofro de machismo. Meu deus, como o feminismo me salvou. Odeio todos os homens, uns merdas, mas, meu deus, como preciso de uma piroca. Bloqueio e desbloqueio o mesmo macho catorze vezes por semana porque um vibrador só não dá conta de mim, meus desejos e minhas ansiedades.

Relaxa, véi, homem nem é tudo isso. Homem nem tem direito onde pegar. O que eu mais gosto são as amigas hétero, casadas, loucas pra justificar porque adoram piroca. Faz até desconfiar.

Mas o feminismo. O feminismo me salvou também, sabia? Eu tive um namorado super abusivo (todas tivemos) e o que me fez me sentir menos lixo foi o feminismo. E isso foi depois de um ano. Depois de eu sentir vergonha e culpa por sentir falta de piroca e de massagem nos pés. Depois de eu achar que tinha sido a pior namorada do mundo. E aí eu entendi que não era minha culpa. Era dos homens. Do patriarcado. Eles não deixam a gente ter nada. Nos subjugam, nós, mulheres maravilhosas, donas do mundo. E, mesmo com o feminismo, mesmo com toda a minha lacração feminazi, eu ainda me sentia vazia e precisava - precisava - que alguma piroca me dissesse o quanto eu era valiosa.

E aí eu quis riscar carro do ex parado no estacionamento da universidade, corri atrás de foda meia-boca de pau pequeno por um ano e meio, escolhi nome dos filhos de gente que vi uma vez na vida antes de checar se tinha namorada, mandei 923757 mensagens não-respondidas pra macho do tinder com quem tinha saído uma vez, escrevi um livro inteiro sobre ex babaca usando nome real dele e da família, achei subterfúgio pra brigar com gente que namorava porque não quis largar a atual pra ficar comigo, chorei e chorei e chorei porque não achava ninguém que quisesse ficar comigo. E tentei me mudar pro que o pretendente da vez achasse melhor. Deve ser o peso, deve ser o cabelo, deve ser o nariz, devem ser minhas roupas ou as drogas ou meu posicionamento político. E, sempre, toda vez, um depois do outro, era o machismo. Homens de merda, não sobra um. Querem me rotular, querem uma boneca inflável, dizem que sou louca.

Mas talvez. Só talvez. Um talvez bem pequenininho. Talvez o problema fosse eu. Talvez a insegurança vaze tanto que preencha todos os cantos menos a mim mesma. Um buraco tão fundo que nenhuma piroca jamais vai conseguir tapar. Talvez. Talvez eu seja louca mesmo. Talvez a depressão e a ansiedade, o TOC e os transtornos de personalidade todos estejam vindo à tona. Talvez querer riscar o carro do ex e ligar trocentas vezes esteja a só um pulo de botar fogo na casa do ex ou de entrar atirando em um cinema. Talvez. Talvez antes de culpar o machismo fosse melhor olhar esse buraco fundo dentro de mim. Talvez fosse melhor perdoar meus pais que só souberam me criar assim e parar de repetir os mesmos erros. Talvez fosse melhor me perdoar por todas as vezes que quis queimar a sociedade inteira.

Talvez antes de culpar todo mundo que veio antes de mim e que virá depois de mim, talvez fosse melhor olhar pra dentro e ver que porra eu posso fazer pra me amar primeiro.

15.10.17

Afrodite

Bom dia a todos. Venho me apresentar. Tenho 28 anos e meu único relacionamento acabou há 6 anos. Eu sei o que vocês estão pensando. Mas eu não vou falar da liquidez dos relacionamentos aqui ou da indisponibilidade emocional da minha geração. Até onde sei, todo mundo anda emocionalmente disponível até demais. Só não pra mim.

O que vocês não sabem é que tenho um poder cósmico dados pelos deuses. Eu instigo o amor em todos ao meu redor. Basta demonstrar um mínimo de interesse por elas. Se eu me interessar por alguém, se ela não já estiver num relacionamento sério há muitos anos, ela automaticamente engata um namoro com uma pessoa bem mais bonita e interessante que eu. E eu acabo até mesmo feliz pelo casal.

Aos 28 anos às vezes eu acho que não sobrou ninguém pra mim. Que vou ter que raspar as sobras e catar os caquinhos de outras pessoas. Só queria ter os cacos de alguém pra poder catar. Minha psicóloga diz que isso é sintoma da minha própria indisponibilidade emocional. Meu mapa astral diz que é meu karma. Eu mesma já acho que é meu poder, minha maldição.

– Viu? – Afrodite me dizia, tirando os longos cabelos anelados de cima dos ombros – Não queria ajudar as pessoas? Olha só você espalhando amor.

No começo ainda tentei flertar. A moça era linda, simpática e eu tinha certeza que estava dando bola pra mim. Semana seguinte ouvi de amigos de amigos que ela tava saindo com alguém. Comprei chá quente e livros pra me distrair.

Marquei encontros com moças que me diziam logo de cara que estavam saindo com outras pessoas. Decorei a casa com as flores que gostava pra trazer bons presságios.

Me encantava com as pessoas, tinha certeza que elas estavam me retribuindo, mas as redes sociais denunciavam casais apaixonados. Passei a comer só o que eu realmente gostava.

Perguntei pra Afrodite novamente quando seria minha vez. Ela sorriu, do meu lado, soprou as cartas do meu baralho mitológico pra que espalhassem todos sobre o chão. Entendi o que ela quis dizer. O que era meu era só o amor próprio. O amor dos outros estava reservado mesmo só pros outros. Comprei brinquedos eróticos de todas as velocidades e espumas de banheira só pra mim.

Atualmente estou com quatro gatos e a certeza de que realmente não sou propriedade de ninguém. Quando vejo alguém que me afeiçoa, abençoo de longe, desejando que tenha uma vida feliz, cheia de tesão.

Ontem Afrodite encostou no meu ombro enquanto eu andava pela rua pensando no próximo livro. Veio soprar no meu ouvido pra ficar esperta. Olha quem vem lá.

– Caba a boca, Afrodite, caralho. Me deixa trabalhar.
Quando acabamos, desejei que ele nunca mais fosse feliz. O que eu não sabia é que tinha outra pessoa planejando o meu fim. Passei 7 anos procurando a felicidade e não encontrei. Becos sem saídas, amores pela metade, homens de uma noite só. Como eu poderia saber? Amores viciados, parceiros perdidos, gente que me levou à perdição. Eu deveria ter sabido. Eu tinha visto as velas e os santinhos pela casa. A. tinha me dito que ela ia no terreiro de vez em quando. Como eu poderia saber? Foi uma galinha preta, umas velas e um barbante amarrando tudo ao meu nome. Esperei 7 anos a mandinga da minha ex-sogra passar. Mal sabia ela que o feitiço tinha sido a melhor coisa que me aconteceu. 7 anos em relacionamentos de merda só me tornaram mais próxima de mim.

13.9.17

Chá de Guaco com Mel


Estou tossindo há dias. Tomei própolis, corticóide e chá verde. Tem alguma coisa arranhando minha garganta que não quer sair. Fica presa entre uma tosse e outra e nunca sai nada.

Hoje de manhã fui escovar os dentes e quase vomitei com a pressão da escova. Quase. No ralinho da pia vi um escorpiãozinho preto entalado no catarro amarelo. Vi sua cauda e suas quelíceras se mexerem suavemente, quase como se não se importasse em estar ali, finalmente vendo a luz branca do meu banheiro.

Agora tenho um buraco sangrento pra cuidar. Bem no lugar onde antes estavam as palavras não-ditas.

28.8.17

Todas as mulheres da minha família eram loucas


Eu passo os dias desviando dos moradores de rua do centro da cidade. Tem uma moeda, senhora? Por favor, senhora! Nos piores dias puxavam minhas roupas, agarravam meus braços. Não tenho, senhor, me desculpe, não tenho nada. Loucos, todos eles. Coitados, loucos.

Minha vó era louca, me diziam. Tirava as roupas no meio da rua, me diziam. Via coisas, me diziam, estava sempre do lado de lá. Você é igualzinha sua vó, me dizem sempre. As mesmas mãos, o mesmo nariz, a mesma personalidade. Agora que cortou o cabelo, nossa, idêntica. Se ela vivesse numa época mais libertária, ela seria igualzinha a você, me dizem sempre. 

Quanto tempo vai levar até eu também ficar louca?

Eu queria ser dessas pessoas cujo maior medo não é enlouquecer. Entrar em mim mesma tão profundamente que ninguém mais consegue acessar. Virar um jacaré com a barriga tão estufada de suas próprias ideias que quase chega ao ponto de explodir. Quase. Só não explode por compaixão dos funcionários do asilo que olham de longe, passam a mão na cabeça, dizem que vai ficar tudo bem, ela passa os dias dentro da própria cabeça, falando umas coisas que ninguém sabe direito.

Afinal, quais são os limites da mente?

Eu sonhei com você ontem à noite. Não era um sonho, na verdade. Era uma alucinação provocada pelo chá do xamã da floresta. Era uma bebida sagrada, me disseram. Te abre pra mundo novos, me disseram, novos entendimentos de você mesmo.

Agora eu estou convencida de que vejo o futuro.

Eu te vi claramente ontem à noite. Estávamos fodendo como se não houvesse mais nada no mundo. A voz na minha cabeça me disse que você iria me procurar. 

Estou esperando. 
Eu vejo o futuro.

O chá do xamã da floresta também me disse que eu vou enlouquecer. Isso é só o primeiro passo, a voz na minha cabeça me disse. Você vai viver em completo isolamento e ninguém vai te reconhecer, perdida na sua própria mente. 

Estou esperando. 
Eu vejo o futuro.

22.8.17

A cidade de São Paulo desaba sobre a gente

O Memorial da Resistência deve ser o pior lugar de São Paulo.

Talvez até seja do mundo inteiro. Antes mesmo de entrar no museu vemos os monstros. Eu moro no centro há três anos e nunca tinha visto ninguém fumando crack. Nem à noite, quando desço do ônibus no Anhangabaú. Devo ser mesmo tapada pra caralho. Os zumbis, enfim, continuam populando os arredores do museu, sentam nas beiradas, são a vista das janelas que insistimos em não ver.

O Memorial da Resistência deve ser o pior lugar de São Paulo.

Do lado de dentro, a memória de uma centena de presos políticos de outros tempos. Suas palavras estão inscritas nas paredes e sua energia continua pesando no ar. Tudo lá dentro é insuportável. No quarto andar, uma exposição do Mauro Restiffe retratava o cotidiano do tempo dos presos políticos. Achei uma merda todas aquelas fotos de grávidas granuladas e mal enquadradas. Fotos de outros tempos que não somam nada, não dizem nada.

O Memorial da Resistência deve ser o pior lugar de São Paulo.

Estudar artes me deu o privilégio de admitir que não gosto de coisas consagradas. Não gostou, por quê, Deborah? Porque tenho mestrado na USP, porra. O mestrado na USP na verdade só serviu mesmo pra criar essas casca grossa e reiterar toda essa presunção. Fez bem, até. Bons frutos. O Mauro Restiffe, por outro lado, deveria é sentir vergonha de ser exposto no antigo prédio do DOPS. Eu teria.

O Memorial da Resistência deve ser o pior lugar de São Paulo.

A gente tenta, tenta, tenta ressignificar as coisas e não consegue. Os fantasmas ainda estão lá. Os fantasmas, independentemente de quantos exorcismos fizermos, os fantasmas talvez fiquem para sempre. Talvez eu mesma nem goste mais de fotografia.

1.8.17

Cinco horas da manhã

Acordei no susto com uma mosca voando pra dentro do meu ouvido. Ficou presa ali. Pus a unha pra tirar e não alcancei. A senti remexendo as perninhas dentro do meu túnel do carpo pelo resto da manhã.

Meu corpo é tão inteligente quanto o de uma ostra, será? Quanto tempo leva pra ela se transformar numa pérola de cera dourada? Quanto tempo leva pra ela botar ovos e as larvas cavocarem até meu cérebro? Vou ter alucinações? Vou me tornar iluminada? Vou trazer mensagens dos mortos até que minha mente inteira seja corroída pelas larvas de uma mosca que um dia entrou sem querer no meu ouvido?

Talvez eu esteja mesmo ficando louca. Limpando o ouvido demais. Acordando com zumbidos de insetos numa casa recém-dedetizada onde há dias não vejo sequer uma joaninha.

Ou talvez seja mesmo minha avó morta zumbindo na minha orelha às cinco horas da manhã. A vovó, meia índia, meio bruxa.

É hora de acordar, filhinha. Ela diria com as mãos cheirando a coentro e louro. Vai fazer comida pra alimentar de luz esse povo todo que morre de fome.

25.7.17

Estou sempre com fome

Queria saber se minhas amigas sentem essa fome toda que eu sinto
É uma fome que me persegue o tempo todo
Uma fome de quê?

Minhas amigas não sentem essa fome toda
É por isso que elas são magras
Que arrumam namorados
Que casam
Que engravidam
E continuam magras

Elas nunca têm fome

Talvez eu nem quisesse um namorado
Talvez eu só quisesse

Minhas amigas nunca têm fome
Elas estão sempre de dieta
Leite dá espinha
Queijo entope as veias
Chocolate faz mal pro cabelo
Elas arrumam o cabelo com mil produtos

Eu tenho preguiça de arrumar o cabelo
É por isso que corto ele bem curtinho

Elas estão sempre mudando de cor
Gastam fortunas com coisinhas para a casa
que dividem com os namorados
Cada uma enche os buracos como pode

A fome que eu sinto é por coisas
que nunca vou conseguir
comer

Mais um poema que fiz para você

Os morangos mofaram
enquanto trepávamos

Joguei fora
três litros de sopa
estragada

Comi os morangos
com mel
doces e podres

como nós dois

Preciso mesmo
de decepções
para escrever
poesia


27.6.17

The Dream Enchantress

No domingo, chegou em casa o Tarot mais bonito do mundo. É um portal para outro mundo e é meu. Comprei sem ver todas as cartas, na promoção, numa loja que não sabia se entregaria. Chegou. Perfeitinho. Nem acredito que tenho uma coisa tão bonita.

Semana passada comecei a trabalhar num lugar novo. Faço exatamente o que gosto, respeitam meu trabalho e me tratam bem. Eu nem acredito. Fico logo procurando os erros nos contratos, as pegadinhas, os mal entendidos. Até o baralho disse pra eu deixar de ser tonta e aproveitar.

Não estou gorda ou magra demais. As feridas na minha pele estão sarando. Não sinto vontade de beber sozinha, à noite. Pela primeira vez em anos, tenho dinheiro. Fico procurando defeitos nos espelhos pra ver se acordo do transe.

Deveria estar na Alemanha? Deveria estar em Nova Iorque? Deveria ainda estar tentando viver da minha arte? Decidi parar de fugir de mim mesma. Minha história vai me seguir para qualquer lugar. Prefiri fazer as pazes com as entrelinhas, viver com calma, preparar o jantar todos os dias.

Hoje teve queijo. Teve baralho novo. Teve amigos. Não teve espaço para a solidão.

Eu, que quando sou triste, sou Kafka, não sei se me reconheço agora que estou feliz.

12.5.17

Mal contato

É meu terceiro vibrador que morre.
Mal contato.
Parece simples, né? Mal contato.
É só juntar uns fios, uns cabos.
Se abrir a maquininha, tá cheio de chip.

Parecem cidadezinhas
com prédios, ruas e conexões.
Aquele prédio ali é o meu. O seu é no outro lado da cidade.
Se a gente pegar um onibuzinho consegue chegar rapidinho.

Mas você não quer.
Nem meus cabos, meus fios ou meus chips querem.
É só uma questão de mal contato.
Parece tão simples, né?
Vou ter que usar meus dedos.

Mas eu queria os seus.

7.5.17

Morte na Família

Nos últimos anos duas amigas muito próximas perderam seus pais de repente. O que você fala numa hora dessas? Ele tá num lugar melhor? Longe de você e da sua família que perdeu um provedor prematuramente?

Ontem minha tia avó morreu. Tia avó. Não foi de repente. Tinha 95 anos, alzheimer e fazia meses que estava definhando no hospital. Foi um puta alívio. Só fico chateada pelo apartamento gigante a uma quadra do Leblon que eu não vou herdar. Tia avó. Mas adorava ela pra caralho. De verdade. Quando ela ainda tinha cabeça, era super engraçada. E quando não tinha, era um doce. Mas não foi câncer, não foi de repente, foi um alívio. Pobre Tante, parou de sofrer. Foi igual o Tom que decidimos sacrificar depois de 17 anos cuidando da nossa família. Um puta alívio.

Fui com meus pais pro velório. Da tia avó, não do cachorro. O Tom teve uma cremação comum com outros cães sacrificados. Não pedimos as cinzas. Não quero guardar nem as cinzas dos meus pais. Energia tem que circular. 

Fui no velório. Meu pai já tava lá. Fui com a minha mãe. A cerimônia era no último andar de um shopping center enorme, teto de vidro e tudo. Teoricamente eu sabia chegar, mas eu sempre me perco, ainda mais em lugares que não conheço. Com a minha mãe tem que usar as rampas. Nunca vi rampas tão íngremes, era como surfar no piso do prédio. "Rio de Janeiro," eu disse pra minha mãe. "Tudo é zoado aqui." E era na porra do último andar. Tinha hora pra chegar. Antes do Shabbat, me disseram, não deixa escurecer.

Último andar. E nunca chegava. Rampas e escadas rolantes e elevadores e nunca chego lá. Um andar depois do outro e sempre tem mais um. E minha mãe do lado, cabelo branco e bengala, não aguenta mais andar. Só quer poder dar tchau pra Tante. E escada rolante e rampa de montanha russa e elevador. Cadê a porra da sinagoga?

E vimos o cortejo, lá longe, lá embaixo. Sei lá de onde saiu. Acho que acabou o Shabbat, deve estar acabando. A Tante está lá, fresca como se tivesse 70 anos, sorrindo, cabelo branquinho, no caixão aberto cheio de flores brancas. Atrás dela, o rabino. Segurando o caixão, meu pai. Nunca o vi tão frágil, cabelos brancos e cara de triste. Como é que deixaram um senhor desses carregar esse caixote?Nunca tinha percebido o quanto eles frágeis, meus pais. O quanto estavam velhos, o quanto mais eles envelheceriam todos os dias. Quanto tempo resta até ter mais uma morte na família? Quem vai carregar o caixão do meu pai?

E eu, que só tinha por obrigação achar o caminho, nem sei onde é que estou.

14.4.17

O Labirinto

Correu pelo labirinto. Dez, vinte, infinitas vezes. Cantos intermináveis. Parecia que corria e nunca conseguia sair. Sua respiração era curta e fragmentada. Os pensamentos corriam tão rápido quanto seus pés. É por aqui, dizia a cabeça. Não, por aqui. Depois da angústia e da desesperança, vinham as náuseas.

Sentou no chão. Frio e sozinho, começou a chorar, como qualquer garoto faria.

– Ei - veio uma voz de dentro de sua cabeça.

O garoto olhou o canto musguento da parede. Em cima das plantinhas, estava uma salamandra de fogo, quase fora de lugar.

– Ei - disse a voz de novo.

O garoto piscou. A salamandra mostrou a língua feita de labaredas.

– Tá perdido, cara?

– Preciso sair daqui - respondeu, em um único sopro.

– Primeiro você tem que relaxar.

Bruno revirou os olhos. Como conseguiria relaxar preso aqui?

– Calma, cara - disse a salamandra. - Desculpa. Ninguém consegue se acalmar quando pedimos calma, né? O segredo é respirar. Inspira uma vez. Duas, três. Agora solta tudo. Isso.

O menino respirou aos poucos, levantando as mãos. Os batimentos cardíacos começaram a desaceleraram e os pensamentos ficavam mais claros.

Em sua mente, as paredes foram se desfazendo. Tijolo sobre tijolo ruiam ao chão. O céu azul, pouco visível acima de si, tomou conta de todo o seu entorno.

Ele abriu os olhos. Sentiu um comichão nas costas. Sorriu para a salamandra.

Abriu as asas que esqueceu que tinha e voou para fora do labirinto.

18.1.17

Devoradora de Mundos

Devo ser algum tipo de assassina serial de homens, que escolhe os fracos, suga toda a sua energia vital e os deixa morrer, lentamente, enquanto eu triunfo. Deve ter alguma coisa a ver com minha vênus em escorpião e minha lua em áries que devora tudo e quer tudo junto, agora. Deve ter. Não aguento esperar, amar aos pouquinhos, odeio dividir. Os homens que me adoravam, passavam semanas comigo, nossa, você é tão especial, é perfeita, mas amor? Amor é outra coisa. Melhor esperar pro amor de verdade vir. E o amor de verdade não está aqui. Com certeza tem a ver com meus pais que também nunca se amaram. E eu, aprendendo com quem sempre me deu o melhor exemplo, continuo incapaz de receber amor, vivendo de migalhas, aceitando o que sobra pelo caminho. Fingindo que o amor é outra coisa, que não faz diferença. Eu sei lá o que é amor. Melhor ler Bauman e parar de chorar sozinha no banheiro. Melhor continuar devorando os homens. Um por um e suas energias vitais. Algum dia serei a grande besta das galáxias, reinando suprema e me alimentando de todas as vidas que engoli.