28.10.16

Carregue meu Cadáver - Capítulo 23

Gustavo enchia balões de gás hélio todos os dias. No final do expediente, gostava de esvaziar os balões na própria boca, fumar maconha e ouvir a própria voz distorcida. Durante o dia, no entanto, fumava escondido atrás dos balões e os vendia para crianças e casais apaixonados. Gustavo não entendia por que casais apaixonados compravam balões. Talvez eles também gostassem de esvaziá-los nas próprias bocas, fumar maconha e ouvir suas vozes distorcidas no fim do dia. Ele certamente recomendava. Ou talvez o amor fosse só uma desculpa para voltar a ser infantil. Gustavo não sabia direito, ele só viajava junto com o parque nômade, enchia e vendia seus balões.

Domingo sempre era mais agitado. Cheio de crianças e casais apaixonados. Gustavo finalmente conseguiu um tempinho para se esconder atrás de seus balões e ter um pouco de paz. Acendeu o cigarro e ficou ouvindo o bochicho do parque. As crianças gritando ao fundo, o som do metal raspando enquanto a montanha russa frágil corria em seus trilhos, gente rindo. Uma voz mais alta se destacou.

– Quer um balão, amor?

Gustavo fechou os olhos. Tentou ignorar. Não ouviu uma resposta. Torceu para que isso significasse que o casal tinha ido embora. Não significou.

– Olha só, tem de unicórnio. Mas tem de golfinho também.

Silêncio.

– Quanto será que é? Cadê a pessoa que trabalha aqui? Oooooi!!

Gustavo se levantou contrariado, abriu espaço entre os balões. Piscou uma vez. Piscou duas. Por que esse cara tava arrastando um cadáver pelo parque? Por que ele estava conversando com ela?

Gustavo jogou o beck no chão. Piscou e torceu o pé em cima do cigarro recém-enrolado. Precisava parar com as drogas.
  
Depois desse cliff-hanger, vou deixar vocês sem capítulos por uma semana porque vou viajar. Volto na próxima segunda. Bom Dia das Bruxas e bom Finados pra vocês! 
Esse capítulo faz parte de Carregue meu Cadáver, o livro que estou escrevendo sobre relacionamentos abusivos. Vou postar um capítulo por dia até acabar.

Adoraria saber sua opinião, então deixe um comentário me dizendo o que achou, divida com quem você acha que vai gostar e me cobre se eu parar de postar.

Obrigada!

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27.10.16

Carregue meu Cadáver - Capítulo 22

– Você viu que armaram um parque de diversões na Lagoa?

Gabriela passou seu cartão no sensor do ônibus. Julieta, a cobradora, dormia com o caça-palavras aberto em cima do peito extenso.

– A gente vai ter que ficar em pé, né? – disse Taís, que vinha logo atrás.

– Assim a gente finge que tá andando de skate.

– Sua síndrome de Poliana me tira do sério às vezes. Eu nem consigo segurar a barra.

– Então. Anda de skate.

Gabriela abriu os braços. Taís riu. Gabriela sorriu. Fazia muito tempo que Taís não ria.

– Mas, ow, parque de diversões na Lagoa. – disse Gabriela – Vamos?

Taís parou de rir. Encarou Gabriela.

– Vamoooos. – disse Gabriela. – A gente nunca vai pra lugar nenhum! É tão programa de índio que tenho certeza que não vai ter nenhum idiota da escola lá.

– Meu, aqueles brinquedos todos têm cara de que vão enferrujar e se desfazer a qualquer momento. Só de olhar já causa acidente. A gente vai morrer naquela montanha russa.

– Pelo menos a gente morre feliz. Comendo algodão doce feito na maquininha.

– Eu gosto mais de ver o cara fazendo do que realmente comer o algodão doce.

– Então sábado? Leva a câmera.

– Levo.

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26.10.16

Carregue meu Cadáver - Capítulo 21

Era a primeira semana de trabalho de Marcelo no posto de gasolina. Aos 19 anos, ele já tinha trabalhado como auxiliar de escritório e em um bar. Sempre foi bom com o público. Sabia que só precisava sorrir e chamar todo mundo de doutor.

O Pálio vermelho encostou naquela manhã chuvosa com a astúcia de uma Ferrari. Bom dia, doutor. O cheiro subiu tão logo o vidro fosco de insulfilme abaixou. Marcelo manteve a compostura. Gasolina ou etanol? Completa. Quer que lave o parabrisa?

Marcelo olhou para dentro do carro discretamente. A moça no banco de passageiro dormia com a cabeça apoiada na janela. Ela tinha uma doença de pele que a fazia descamar como uma cobra. Marcelo tinha visto isso uma vez em um gartoto de rua quando era criança. Mas o cheiro não era bem esse.

– Quer que limpe o lado de dentro do carro, doutor? Tá meio cheirando mofo.

– Mofo? Eu não tô sentindo cheiro de nada.

– Será que não tá incomodando a moça?

– A Ana?

O rapaz deu um tapa forte na coxa da namorada. Magra como um esqueleto, seu corpo todo balançou na cadeira. Sua cabeça desceu um pouco na janela, mas ela continuou dormindo.

– A Ana aguenta qualquer coisa.

O rapaz abriu um sorriso largo. Pagou no débito. Arrancou o carro, quase cantando os pneus. Marcelo torceu para não ter ofendido ninguém. Sentiu pena da moça.

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25.10.16

Carregue meu Cadáver - Capítulo 20

– Mãe.

O yakisoba estava quase na metade quando Taís finalmente criou coragem de puxar assunto.

– Você lembra da Ana, do primário? Ela vivia aqui em casa.

– Claro, filha, lembro de todas as suas amigas. Aquela de óculos, né?

– Não, mãe, aquela é a Gabi. A Ana é loira. Tinha um cachorro. Filha da tia Paulina.

– Sei, sei. Claro que lembro. O que tem ela?

Taís achava curioso que a mãe não olhasse nos seus olhos para conversar. Ela dividia a atenção entre os talheres, o guarda-napo e o celular, que mantinha ao lado, para o caso de alguém ligar do trabalho.

Taís respirou fundo e continuou, sem saber bem por quê.

– Faz três meses que ela só sai com o namorado e não fala mais comigo e com a Gabi.

– Ai, minha filha, isso é normal. Na sua idade eu só tre… Eu só namorava, também.

– Mas ela nem parece que sente nossa falta…

Pela primeira vez durante o jantar, Betania olhou para Taís. Não foi um olhar profundo, daqueles de matriarca que sabe das coisas. Foi um olhar furtivo, meio com vergonha, que logo voltou a se direcionar aos talheres. Ela começou falando devagar, como se explicasse conceitos legais para uma viúva senil.

– Olha, Taís. Acho que tá na hora de você arrumar um namoradinho também, não acha? Todo mundo já acha que. Não. Deixa pra lá.

Taís parou de comer o yakisoba.

– Todo mundo já acha o quê?

– Nada não, minha filha, deixa pra lá. Já terminou? Vou tirar isso aqui, colocar na lava-louça.

Taís odiava a lava-louça. Era uma máquina que fazia mal o que um ser humano era perfeitamente capaz de fazer sozinho. Sempre sobravam restos de comida grudados na cerâmica.

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24.10.16

Carregue meu Cadáver - Capítulo 19


Antonio mergulhou o sushi no molho de soja. Primeiro de um lado, depois do ouro, até o arroz e o salmão ficarem completamente tingidos de marrom.

– Odeio comida japonesa. – disse Antonio. – Não tem gosto de nada.

Ele colocou o sushi na boca e mastigou. Yuri, o garçom, passou na mesa oferecendo mais chá verde. Antonio aceitou. Pediu para servir sua acompanhante também. Yuri evitou olhar para ela. Achava de um incrível mal gosto usar perfumes tão fortes enquanto outras pessoas estavam comendo.

– Só venho aqui porque você gosta. – disse Antônio, com um copo de argila em uma mão e camarão empanado na outra.

O corpo de Ana encarava o abismo do outro lado da mesa. À sua frente, o prato de shimeji e a cumbuca de missoshiro esfriavam devagar.


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20.10.16

Carregue meu Cadáver - Capítulo 18

Taís gostava de lavar a louça. Apesar de não gostar de arrumar mais nada na vida, ela gostava de lavar a louça. A água caindo na porcelana ou no vidro trazia quase a mesma satisfação de tomar um bom banho. Era a pausa no meio do dia necessária para colocar as ideias no lugar.

Ela também tinha o que barganhar pelo fato de nunca limpar o próprio quarto.

– Já tá lavando a louça, filha? Tá tão cedo.

Betania, a mãe de Taís, chegava muito tarde em casa, muitas vezes depois de Taís fingir que estava dormindo.

– Você é que chegou cedo.

– Tive um dia cheio no escritório. Precisava sair, tomar um ar. Vamos pedir um chinês? Vai botando a mesa que eu preciso tirar essa roupa.

Taís não se lembrava exatamente o que a mãe fazia. Achava que era advogada, mas não tinha certeza. Taís achava engraçado a forma como os adultos conseguiam puxar conversa com desconhecidos com tanta naturalidade.

Betania entrou na cozinha ainda com o cabelo molhado.

– É tão bom chegar em casa, né, filha? E essa louça chique? É alguma ocasião especial.

– É porque você vai jantar comigo, mãe.

Betania sorriu. Taís sorriu também. Era mentira. Taís usava a louça cara que Betania guardava nas prateleiras mais altas todos os dias. Não via motivo para ter as coisas se não fosse usar.

Campainha. Macarrão com molho de soja da caixa de papelão para a vasilha de louça. Hashi ou garfo e faca?

– Não consigo usar esses pauzinhos. Usa você, que é jovem.

Parecia errado usar talheres de madeira barata com ferpinhas junto com pratos com borda de ouro. Na mesa, Taís fazia de tudo para deixar as coisas perfeitas, mas às vezes tudo continua um pouco fora de lugar.


Esse é o décimo sexto capítulo de Carregue meu Cadáver, o livro que estou escrevendo sobre relacionamentos abusivos. Vou postar um capítulo por dia até acabar.

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Carregue meu Cadáver - Capítulo 17

Roberta olhava o casal de trás do balcão da sorveteria. Ela já tinha achado curioso desde que eles chegaram.

Ele a tinha carregado para dentro pela cintura, como se ela fosse uma boneca de cera enorme. Tinha empurrado a cadeira de metal com o pé e ajudou a garota a se sentar. Do balcão, conseguiu ouvi-lo dizer:

– Fique bem, amor, eu já volto.

E então ele foi até o balcão self service, pegou dois potinhos de plástico e começou a se servir.

A garota ficou largada na mesa. Devia estar mesmo muito mal. Quando Roberta tinha cólicas menstruais, tudo que ela queria era um namorado que a levasse na sorveteria e pegasse sorvete para ela. Mas Leandro, aquele vagabundo, nem se dignava a comprar chocolate para ela comer dentro da própria casa. Talvez fosse a hora de repensar esse relacionamento.

Roberta se endireitou na cadeira. Vai querer mais alguma coisa? Uma água? Débito ou crédito? Entregou as colherzinhas de plástico.

O rapaz levou o sorvete até a boca na namorada. Delicado, segurou sua nuca para poder equilibrar-se melhor. Roberta sempre quis um namorado que a desse comida na boca. Mas Leandro, aquele insensível, só tinha feito isso bem no comecinho do namoro.

O sorvete escorreu um pouquinho da boca da moça. Uma linha fininha até o queixo. O rapaz limpou com um guarda-napo de papel tão fino que parecia plástico. Teve que usar vários guarda-napos. Pareceu irritar-se enquanto pegava cada vez mais papéis. Roberta também odiava esses guarda-napos. Ela sempre dizia que se algum tivesse sua própria sorveteria, teria guarda-napos decentes, de papel fofinho e desenhos de azaleias vermelhas.

Roberta observou o rapaz comer seu sorvete também. Era interessante o contraste entre a forma como ele alimentava a namorada, tratando-a como uma xícara de porcelana chinesa, e a voracidade com que consumia sua própria comida. A diferença entre fêmea delicada e macho viril era bastante evidente. Roberta pensou o que mais o rapaz faria com a mesma intensidade. Mas Leandro, aquele brocha, era quase uma menina.

Perdida em seus pensamentos, Roberta não tinha percebido que a garota se curvou para cima da mesa. O rapaz só percebeu quando viu que o sorvete formada uma pequena poça em cima do mármore da mesa. O líquido rosa claro escorria da boca semi-aberta da moça, sujava seu queixo e pingava devagar sobre a mesa. Preguiçosa, ela nem fazia menção de se limpar. Mantinha os braços pendentes ao lado do corpo, como uma múmia.

O rapaz, evidentemente preocupado, juntou ainda mais guarda-napos para limpar a mesa e o rosto da namorada. Quando os guarda-napos de sua própria mesa acabaram, pegou os da mesa vizinha. Tão dedicado! Continuou limpando o rosto da moça.

Quando Roberta deu conta de si, o rapaz tinha aberto a boca da namorada e estava limpando o interior de suas bochechas e sua língua. 

Jesus Cristo. Anorexia tem limite.

Esse é o décimo sexto capítulo de Carregue meu Cadáver, o livro que estou escrevendo sobre relacionamentos abusivos. Vou postar um capítulo por dia até acabar.

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18.10.16

Carregue meu Cadáver - Capítulo 16

Taís encheu dois copos de suco de laranja em cima da mesa da cozinha. Uma gota de suco respingou em cima do livro de biologia aberto no capítulo sobre parasitologia. Taís não se deu ao trabalho de limpar o livro, havia coisas mais importantes para resolver.

– Tá com fome? Tem essas bolachinhas que minha mãe ganhou de um cliente, pode pegar. Acho que é importado.

Gabriela esticou a mão para o vidro no centro da mesa. Os biscoitos amanteigados eram branquinhos e macios como os que sua tia-avó Margaret fazia antes de morrer. Gabriela segurou o biscoito e ficou olhando para ele.

– Aconteceu uma coisa estranha no sábado.

– Deixa eu pegar um pratinho pra você. Aí você pode passar doce de leite na bolacha.

– A mãe da Ana me ligou. Ela queria saber se ela tava na minha casa.

Taís parou no meio da sala segurando os pratos de sobremesa brancos com estampas de andorinha.

– A Ana não tá na casa dela?

– Foi o que a mãe dela me disse.

Taís voltou a andar, colocou um prato à frente da amiga e outro em frente à cadeira vazia ao seu lado. Abriu o armário para pegar doce de leite.

– Ela deve estar na casa do namorado, né? Ela sempre tá lá.

– Foi o que eu disse.

Gabriela colocou o biscoito amanteigado na boca. O cliente da mãe de Taís provavelmente os trouxe do leste europeu.

– Mas faz tempo? – disse Taís. – A tia Paulina é tão egocêntrica que é capaz da Ana ter sumido há meses e ela nem ter percebido.

– Eu não sei. Ela não me falou. Acho estranho a Ana não ter me falado nada.

– Faz quanto tempo que ela não te fala nada?

O biscoito pesou no estômago de Gabriela. A última vez que recebeu qualquer mensagem da amiga já havia algum tempo. A festa da Ariane tinha sido no último fim de semana, quando ela passou o tempo lendo e jogando videogame com o meio-irmão.

– Taís, acho que precisamos fazer alguma coisa.

– O pior que pode ter acontecido foi que a Ana fugiu de casa pra ficar longe da mãe louca dela.

Taís puxou o livro grosso de biologia para mais perto. Usou a prova do dia seguinte para disfarçar a incerteza que ela própria sentia.
Esse é o décimo sexto capítulo de Carregue meu Cadáver, o livro que estou escrevendo sobre relacionamentos abusivos. Vou postar um capítulo por dia até acabar.

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17.10.16

Carregue meu Cadáver - Capítulo 15

Era sábado. Dona Vânia gostava dos sábados porque adorava receber os empregados que cuidavam de sua casa. Seu José cuidava do jardim e tinha Glória, o presente de Deus que, apesar dos seus probleminhas, cuidava da casa há mais de dez anos. Impossível viver sem.

Outro ritual do sábado era assistir o menino do vizinho lavar o carro. Ela tinha acompanhado Antonio crescer. Desce criança quando jogava futebol, até os primeiros prêmios em competições de matemática. Hoje era um homem adulto, que cuidava do carro como um troféu. Lavava e encerava com muito cuidado. Dava gosto de ver, um homem de verdade.

De algumas semanas para cá, no entanto, a namorada de Antonio começou a acompanhá-lo nessa tarefa tão importante.

– É esquisito, não é, Glória. – disse dona Vânia soltando a fumaça do cigarro, enquanto espiava de trás da cortina da sala. – Ela fica encostada na cadeira sem fazer nada por um tempão. Nem conversa com ele.

Glória dobrou a última camisa branca dentro do cesto de roupa limpa ainda quente, prestes a ser guardado na sua gaveta.

– Essa menina tá é morta, dona Vânia.

Dona Vânia mal esperou Glória sair da sala com o cesto de roupa passada. Virou-se para o filho, Marcelo, que via televisão. Marcelo tinha crescido com Antonio e tinham jogado muito futebol juntos.

– Celo, acho que a Glória tá vendo coisa de novo. Eu hein.

Esse é o décimo quarto capítulo de Carregue meu Cadáver, o livro que estou escrevendo sobre relacionamentos abusivos. Vou postar um capítulo por dia até acabar.

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13.10.16

Carregue meu Cadáver - Capítulo 14

Gabriela acordou assustada com o telefone tocando. Oito horas da manhã. Era sábado, não era? Não precisava ter ligado o despertador.

– A Ana tá aí? – a voz do outro lado parecia uma professora rígida, cobrando matéria que não foi dada.

– Q-quem é?

Gabriela mal abria os olhos.

– É a Paulina, mãe da Ana, Gabriela. Não reconhece minha voz?

Gabriela se sentou na cama. Esfregou os olhos. Fazia anos que não via a mãe de Ana, quase não se lembrava do nome de tia Paulina.

– Reconheço, reconheço sua voz, sim, tia Paulina, claro. Só não lembro de ter te dado meu número.

– Não deu mesmo. Eu procurei nos cadernos da Ana. Demorou, tive que procurar nuns cinco, mas eu consegui achar, sempre acho. No meio daquele monte de desenho, de poema, só bobagem. Enfim. A Ana tá aí?

– Que?

– Na sua casa. A Ana. A Ana tá aí?

– Ela não tá em casa?

– Acho que você não tá me entendendo. Perguntei se a Ana está na sua casa. Na sua casa.

Gabriela se lembrou porque não gostava de passar os fins de semana na casa da Ana. Porque os programas quase sempre foram na casa da Taís. Gabriela apoiou o cotovelo no joelho e massageou a testa.

– Não, tia Paulina. Eu não vejo a Ana há semanas – Gabriela respondeu com voz fraca. – A gente só tem se falado pela internet. Será que ela não tá na casa do namorado?

O telefone ficou mudo por um instante. Gabriela sequer conseguia ouvir Paulina respirar.

– Namorado? Ela nunca me disse que namorava! Será que ela tá usando camisinha? Vai ficar muito feio pra mim se essa menina me aparecer grávida aqui em casa…

– Eu não tenho o telefone dele pra te passa, tia Paulina, descu–

– Tudo bem, minha filha. Se você souber de qualquer coisa, me fala.

– Mas eu já te…

E Gabriela percebeu que o telefone havia sido desligado. Olhou para o celular. Pensou se deveria contar o que havia acabado de acontecer para Taís. Pensou se deveria ficar mais preocupada.

Colocou o celular no silencioso e voltou a deitar. Era sábado.

Esse é o décimo quarto capítulo de Carregue meu Cadáver, o livro que estou escrevendo sobre relacionamentos abusivos. Vou postar um capítulo por dia até acabar.

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12.10.16

Carregue meu Cadáver - Capítulo 13

Hoje fazia quinze anos que seu Joaquim ia ao parque todos os domingos. Seu Joaquim se lembrava da data exata porque ele tinha começado a vir no vigésimo quinto aniversário de casamento junto com sua falecida esposa Marta. Martinha era uma belezinha de mulher e adorava comprar pipocas para dar aos pombos da praça.

Depois de cinco anos separados, seu Joaquim sentia que continuar seus rituais era o que mais o aproximava da esposa. Além dos pombos da praça, Joaquim mantinha o hábito de colocar duas xícaras com desenhos de borboleta quando fosse tomar o café da manhã, mesmo que nunca tinha aprendido a passar o café com o mesmo esmero de Martinha.

Então todos os domingos de manhã, seu Joaquim recolhia o jornal, fazia duas xícaras de café – um com açúcar, outro com adoçante– e resolvia a palavra cruzada enquanto tomava os dois cafés. Depois de se escovar e vestir sua boina, pegava a bengala e descia ao parque.

Comprava pipocas do Augusto, que gostava de chamar o seu Joaquim de doutor – e seu Joaquim gostava de ser chamado de doutor – e se sentava no mesmo banco de madeira pintado de branco exatamente entre o coreto e o riachinho para dar pipocas aos pássaros.

Hoje, no entanto, não dava para sentar no seu banco.

Seu Joaquim nem sabia que os jovens de hoje em dia eram capazes de acordar tão cedo, ainda mais para ir ao parque e sentar no seu banco. Seu Joaquim não via problemas em dividir o banco, mas tinha alguma coisa absolutamente repulsiva no casal.

O rapaz tocava uma música de sua própria juventude no violão para a moça a seu lado. Um bom rapaz. Seu Joaquim não conseguia acreditar que a moça a seu lado tinha qualquer relação com ele.

Obviamente viciada em crack, sua pele era cinzenta e rachada em vários lugares. Ela estava esparramada no banco, com os braços soltos ao lado do corpo e a cabeça pendendo para trás, voltada para o céu. Mesmo à distância, dava para sentir seu cheiro de podridão humana.

Pela primeira vez em quinze anos, seu Joaquim comeu uma pipoca. Comeu uma pipoca e andou alguns metros. Sentou em outro banco, com outra vista para o coreto e a alguns metros mais distante do riachinho. Continuou comendo as pipocas até o fim do saquinho, afinal agora estava instaurada a anarquia.

Do seu novo banco, ainda conseguia ouvir o jovem rapaz cantarolando para sua amiga que mais parecia uma garota de programa barata.

Will you still need me
Will you still feed me
When I’m sixty-four.


Esse é o décimo terceiro capítulo de Carregue meu Cadáver, o livro que estou escrevendo sobre relacionamentos abusivos. Vou postar um capítulo por dia até acabar.

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11.10.16

Carregue meu Cadáver - Capítulo 12

Gabriela estava escovando os dentes quando ouviu um zunido do quarto. Cuspiu. Devia ser Taís mandando alguma foto de gatinho idiota. Mas provavelmente não. Taís tinha ficado estranhamente quieta depois que Ana sumiu. Pensando bem, ela própria estava estranhamente quieta.

Gabriela pegou o celular. Era Ana.

“Não posso. Nesse fim de semana tem festa da família do meu namorado.”

Gabriela respirou fundo. Não lembrava a última vez que Ana tinha aceitado qualquer proposta para sair.

“Você nunca mais vai sair com suas amigas?”

Gabriela sentou na cama. Deixou o celular em cima da mesa de cabeceira. Preferia não esperar a resposta. Como se já não tivesse nada para fazer nesse lixo de cidade. Pegou o livro da mesa, abrindo no ponto que tinha parado na noite anterior. Os zumbis tinham acabado de entrar na cidade. Gabriela precisava saber se o casal pela qual ela torcia conseguiria ficar junto. E também se eles sobreviveriam.

O celular zumbiu.

Gabriela esticou o braço preguiçosamente. O vício era maior que a curiosidade. Os zumbis podiam esperar um pouco mais.

O rosto torto de Ana, com maquiagem demais e um esparadrapo mal colocado, respondia na tela de descanso do telefone:

“É que amo muito meu chu. Não consigo sair de perto dele.”

Esse é o décimo segundo capítulo de Carregue meu Cadáver, o livro que estou escrevendo sobre relacionamentos abusivos. Vou postar um capítulo por dia até acabar.

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