25.2.08

Olhos de Topázio - parte IV (final)

Para quem não andou lendo, dá para perceber que este post faz parte de uma série. Você pode encontrar a parte I aqui, a parte II aqui e a parte III aqui. Para quem andou lendo, eu vou avisar que essa parte é um pouquinho mais longa que as anteriores.
Boa leitura! Espero que vocês gostem!


Pularemos a parte onde o Conde Le Fruit apresenta-se para o Rei, onde a corte toda ri pelas costas dos pretensiosos heróis e a parte em que a própria Princesa pede - quase suplica – ao Conde que mate de verdade a bruxa que lhe fez mal. Faremos isto porque melodrama é chato. Ação é legal. Então vamos a ela.

— Esta é a Floresta Negra, não é? – perguntou o Conde do alto de Tutti Frutti, seu alazão marrom e robusto, à Deborendorane, a menestrel, que seguia atrás sobre ConClave, o pônei preto, mas veloz. Ela segurava um mapa de todo o Território Desconhecido e respondeu:

— Sim. Aqui mesmo.

Os cavalheiros cavalgaram por vários dias dentro da floresta, perguntando a seus moradores (gnomos, elfos, centauros, faunos, dríades, fadas, ninfas...) onde haveria uma bruxa escondida – ou pelo menos uma fonte de ruindade muito forte energicamente. Um par de fadas – uma lilás, a outra verde, ambas brilhantes e graciosas – indicou-lhes a direção para a Bruxa. Elas diziam que Hecate, poderosa como era, não tinha motivos para esconder-se.

O caminho, interessantemente, era tranqüilo e desprovido de mazelas. A cabana teoricamente habitada pela bruxa era rústica e convidativa.

— Parece a casa da bruxa de João e Maria – comentou Deborendorane desconfiada.

— Será que ela vai nos comer? – brincou o Conde.

Ela, receosa, seguia o herói obstinado até a porta. De dentro, ouvia-se o assovio do vapor saindo de uma chaleira e os ruídos de uma cadeira de balanço. Visto de fora, o chalé poderia pertencer a qualquer velhinha, à avó de muitos netos, daquelas que cozinham bem e contam histórias. Bruxas tinham filhos?

O Conde bateu na porta, três vezes, como era o costume dos arqueiros. O assoalho rangia com cada passo vagaroso e – depois do que poderia ter sido uma batida de coração ou uma era – a porta se abriu, revelando a mesma velha que havia trocado de olhos com a Princesa, meses atrás, porém sem chapéu, o que mostrava seu novo olhar castanho. Ela examinou o herói cuidadosamente, depois sua menestrel e disse – sua voz quase um suspiro:

— Você é o último dos heróis que mandaram para me matar? – por um momento, o Conde imaginou Ter visto a mão que repousava ainda sobre a maçaneta tosca de madeira estremecer.

— Tu és Hecate, Aquela Que Destrói Reinos E Mundos Inteiros Com Um Movimento Rápido Da Mão – afirmou o herói, com firmeza, tentando não se comover com a aparente fragilidade da senhora à sua frente.

— Este título já me serviu melhor – ela olhou para baixo e continuou baixinho:

— Apenas concedi um desejo a uma garota. E avisei das conseqüências que viriam. A Princesa aceitou a minha proposta de bom grado, não hesitou por um instante sequer. Agora estou velha, meu título a mim não mais pertence. Meus olhos levaram consigo minhas forças para continuar. Matariam uma velha incapaz?

Seu rosto mostrava uma desilusão e em seus olhos havia nada mais que pura desesperança. Conde Le Fruit viu-se movido por aquilo. Baixou os olhos para não encarar sua presa. A mão que segurava o arco tremeu levemente. Deborendorane percebeu o recuo do Conde e puxou-o para longe da bruxa.

— Conde, viemos até aqui para matar uma bruxa, uma malfeitora! Você não entende o que ela está fazendo!? Está nos iludindo com sua falsa fragilidade – isso não existe! Ela dizimou batalhões há não muito mais que dois meses!

Por maiores que fossem seus esforços, a menestrel não conseguia conter o tom da voz. Por isso – ou por outros motivos, nunca saberemos os verdadeiros motivos das bruxas -, Hecate logo se pronunciou estendendo os braços num sinal receptivo.

— Mate-me – a voz dela estava controlada e serena – Vivi muito. Agora quero descansar. Peço que digam à Princesa, como meu último pedido, que sinto muito por tudo que tenha acontecido a ela. Realmente, sinto muito e sei que nunca serei perdoada.

Ainda de braços abertos, como se crucificada, levantou o queixo pontudo e fechou os olhos.

Quando a flecha do Conde Le Fruit atinge seu peito, uma única lágrima escorre dos olhos fechados, antes de seu corpo começar a tornar-se pó e a flutuar pela casa – como se já estivesse morta há muito e só agora pôde realmente repousar. Começou a desfazer-se a partir das extremidades – seus dedos das mãos e dos pés – e sobraram, entre vestimentas sujas e amarrotadas no assoalho, dois globos oculares negros.


Foi num dia de verão que a Princesa percebeu que a Bruxa estava morta. Ela sabia, pois cessara de enxergar. Seus olhos continuavam azuis, mas eles perderam sua função.


Algumas semanas depois, o Conde Le Fruit e sua fiel menestrel apareceram no castelo, dizendo que tinham derrotado a Bruxa Hecate e mostrando os olhos antigos da Princesa como prova. O Conde conta ao Rei, também, sobre o arrependimento da Bruxa. Neste momento, entra Eufrisie, a dama de companhia da Princesa, e diz que esta quer conversar pessoalmente com o seu salvador.

Assim, ela leva Le Fruit até a alcova da Princesa, de onde ela não saíra desde a perda de um de seus sentidos. A dama de companhia se despede e deixa ambos conversarem:

— Hecate disse, antes de morrer, que sentia muito por tudo de ruim que ela a proporcionou – começou o Conde, para quebrar o silêncio.

A Princesa, recostada ao balcão, encarando os jardins do castelo não dizia nada. Nem sua respiração era audível.

— Eu lhe trouxe seus olhos de volta – sugeriu o outro, aproximando-se um pouco.

Naquele instante, a Princesa virou o rosto, mostrando os olhos – lindas íris azuis, cor de topázio, com pupilas acinzentadas: olhos mortos.

— Não – ela disse baixinho, porém certa do que dizia – não os quero de volta. Tenho que pagar para sempre pelo meu erro e precipitação. Afinal de contas, consegui meu desejo, não é? Consegui meus olhos azuis.

Houve uma pausa, onde o Conde olhou para seus sapatos de couro cru, intimidado pelo sorriso triste da Princesa.

— Faça com meus olhos o que quiser – ela completou.

— E os pesadelos? – perguntou sinceramente – Os pesadelos acabaram?

— Os pesadelos que tenho quando fecho os olhos acabaram – respondeu com um suspiro – Mas como é possível esquecer o horror que vi enquanto os tinha?


Na saída do Castelo, onde o Rei parou os andarilhos. O Conde rejeitou a recompensa.

— Os olhos da Princesa já foram o suficiente – respondeu sorrindo.

Afastados do Castelo, Deborendorane, sobre seu pônei, pergunta, maliciosa:

— Que olhos das Princesa?

— Estes olhos – responde o Conde, produzindo-os de seu bolso.

Ele jogou um dos globos oculares para sua companheira, que o pegou no ar, o olhou com um pouco de nojo e o guardou na própria bolsa, junto com seu fiel triângulo.


Semanas depois, Deborendorane havia composto a canção sobre Conde Le Fruit, o guerreiro que assassinou Hecate, Aquela Que Destrói Reinos E Mundos Inteiros Com Um Movimento Rápido Da Mão, e o caracterizava como um homem cheio de honra, desapegado a bens materiais. Por séculos, sua canção foi entoada em todas as tavernas e todas as festas em volta de fogueiras do mundo conhecido.

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