Era uma vez uma Princesa muito bonita que tinha olhos castanhos. Ela não gostava de seus olhos castanhos, no entanto, e queria olhos azuis. Queria que refletissem o céu e o mar. Seus olhos castanhos refletiam apenas a terra. E a terra não fazia sonhar.
Sendo Princesa, ela tinha acesso a tudo. Seus pais, o Rei e a Rainha, chamavam feiticeiras, magos, curandeiros e até artistas para tentarem mudar a cor dos íris de sua filha. Nada, porém, funcionava.
Durante certo entardecer, passeava pelos jardins de seu catelo, como fazia em todos os entardeceres. Caminhava calmamente. Os jardins do castelo formavam um enorme labirinto, com arbustos altos e espinhosos, feitos para conter possíveis ladrões e outros malfeitores. A Princesa, claro, julgava-se esperta enquanto fazia o caminho inverso do labirinto, tentando alcançar a saída. Fazia isso em todos os entardeceres, mas nunca alcançava o final.
Esta foi a primeira vez.
Do lado de fora do labirinto, coberta por uma espessa névoa branca que rodopiava com o vento, estava sentada uma bruxa. Ela era diferente das bruxas que adentravam o castelo a mando dos Reis – altas, esbeltas, jovens e belas. Esta bruxa era corcunda, raquítica, velha e feiosa. Tinha as feições tortas, de uma maneira que o rosto parecia uma lua minguante entre a aba do chapéu e o queixo pontudo, e as roupas – em muitas camadas, umas sobre as outras – rasgadas. O chapéu pontudo típico do vestuário das bruxas estava torto e gasto e escondia os olhos da velha. Ela exalava um cheiro forte de carne suja, suor, comida e sangue velhas e endurecidas pelo tempo – talvez até mesmo podridão.
— Eu sei o que você procura, princesinha – disse ela com os estalos de idosos à beira da morte, caquética.
— Quem é a senhora? – quis saber a Princesa, mais curiosa do que amedrontada.
— Eu sou aquela que pode realizar o seu desejo. Só isto basta.
— Não, não é o suficiente. Eu ordeno: quem é a senhora!
— Eu sou aquela que atravessou os desertos do início dos tempos. Sou aquela que adentrou em vulcões para salvar a humanidade de perdição. Sou aquela que transformou meninos em heróis, anjos em demônios e heróis em vilões com uma simples palavra, apenas um olhar. Enfeiticei o mundo para que dormisse e o acordei com pragas e maldições. Fiz milagres àqueles que mereciam e torturei aqueles que o mereciam igualmente. Fiz apaixonar os belos pelos feios. Incendiei o ódio por nações. Fiz guerras perpetuarem-se por séculos. Assassinei os cruéis e os humildes. Transformei montanhas em pradaria, mares em desertos, árvores frutíferas em galhos secos. Eu sou aquela que muda o mundo com apenas um estalo de dedos.
Ao ver o recuo da Princesa, a feiticeira completou:
— Eu sou aquela que pode pintar seus olhos de azul.
Os olhos castanhos da Princesa reluziam, estáticos, de emoção crescente, enquanto dizia, simplesmente “como?” entre as mãos dobradas próximas à boca, os nós dos dedos encostados aos lábios.
A bruxa removeu o chapéu com um gesto surpreendentemente rápido para sua aparente fraqueza, revelando cabelos de um cinza sujo, mais sujos que suas roupas, anelados de uma forma desordenada. Sob os cabelos, no entanto, estavam dois olhos de um azul claro, límpido e brilhantes como topázios. Eram a única parte que parecia realmente viva do corpo da bruxa, como se ela fosse um amontoado de panos velhos e sujos cobrindo duas borboletas. Os olhos brilhavam com uma inquietação louca, transmitindo a vontade de saírem do amontoado de tecidos.
— Eu sou capaz de trocar meus olhos inteiros pelos seus – disse a velha, repondo seu chapéus, tirando suas lindas jóias de vista.
— Não pintaria meus olhos.
— Não pintaria seus olhos. Trocaria. Os meus olhos pelos seus. Tão simples.
Sem hesitar um minuto sequer, gananciosa, a Princesa pediu que trocassem rapidamente de olhos.
As bruxa então apertou o rosto para que os olhos saíssem. Eles pularam para fora das caçapas como frutas maduras fariam se puxadas de seus ramos. Segurou as órbitas leitosas nas mãos calejadas e enrugadas, com unhas compridas e grossas pelo tempo. Pediu que a princesa os segurasse. Olhos tinham consistência estranha, gelatinosa. Estavam frios. Então a bruxa retirou os olhos da Princesa e encaixou-os em seu próprio crânio. Em seguida inseriu os olhos azuis no rosto da menina.
A troca estava feita. Ou quase.
A Princesa piscou algumas vezes, certificando-se da veracidade de seus novos olhos. Sorriu apenas quando viu que a feiticeira agora possuía os seus velhos olhos castanhos.
— Não sorria tão cedo, princesinha – advertiu a velha, gravemente – Você sabe que a nossa troca não será desfeita se você mostrar algum sinal de arrependimento. Terá que agüentar as conseqüências - e haverão conseqüências -, as mais terríveis que forem.
A Princesa aceitou esse tratado com um aceno de cabeça e, sem desviar o novo olhar, correu de volta para o castelo.
Já estava tarde. Seus pais estariam preocupados.
[continua...]