29.3.16
Páscoa
Você já tá vendo doutorado? Não é pressão, mas a gente tem que perguntar de novo, né? A gente se preocupa com você. Como você vai se manter? Como artista? Você está desempregada por causa do seu próprio posicionamento político. Não acredito que pintou o cabelo. A cor não pegou porque não era pra pegar. Tá estragando a melhor coisa que eu te dei. Pára de raspar desse jeito, acho feio. Queria tanto uma filha doutora. Meu sonho, mais uma geração de Doutor Happ. Você é nossa última esperança. Deixa eu ler as coisas que você escreve, morro de curiosidade. Não entendi isso, não faz sentido. Não seja tão agressiva, seus parentes não iam gostar. Como vai sua relação com Deus? Mas, Deborah, você tem dinheiro guardado? Não está passando fome? Mas está linda magrinha assim, tá ótima, tem que manter. Só não mexe no seu cabelo, porque do seu jeito acho feio. Por que você não estuda fora? Pega uma bolsa. Profª Drª Happ. Tão chique. Meu sonho.
28.3.16
Adeus
Pensei que Deus estivesse morto. Criou o universo e morreu. Se cansou de tudo isso. Viu os oceanos, as plantas e os animais. Viu os homens. Viu que era bom. Decidiu que não precisava ver mais nada. Decidiu sumir. Será que Deus volta para o Paraíso quando morre? Será que se transforma em poeira estrelar e comece, finalmente, a fazer parte de sua criação? Ou talvez ele volte a ser nada, como o resto de nós que o inventamos.
22.3.16
18.3.16
Áries
O silêncio pesava no ambiente depois de tanto barulho. O cheiro de ferro, muito vivo, inundava a sala. Seu corpo, ainda quente, estava estirado no chão. A cabeça estava de encontro com a perna da mesa, de onde escorria a nascente de sangue quente, que aumentava aos pouquinhos a poça vermelha ao pé da mesa.
– Ainda bem que ela bateu a parte de trás da cabeça – ele disse, andando pela sala, enquanto desviava do líquido vermelho que esfriava. – Seu rosto é tão bonito.
Ela sabia, é claro. No fundo, bem no fundo, ela sempre soube. Os medos, as palpitações, a ansiedade. Tudo aquilo que se confundia com amor. Nunca deveria ter exigido tanto do namorado, era só o jeitão dele. Deveria era ter escrito sua carta de suicídio.
Olhando bem, nem parecia estar morta. Bastava dar uma lavadinha, encher o buraco da cabeça na frente e atrás de algodão e pintar para dar uma corzinha. Igual os agentes funerários fazem. Ficaria perfeito. Nunca desconfiariam.
17.3.16
Reciclagem
Um dia a unidade doméstica quebrou. As unidades domésticas que quebravam eram levadas para reciclagem e substituídas por unidades mais novas, mais baratas e mais eficientes, suas peças serviriam para consertar outras unidades quebradas.
Quando a unidade de Julieta e Arthur quebrou, eles fizeram as contas de quanto custaria um novo e concluíram que, mesmo com o melhor custobenefício, seria caro demais. Além do valor da unidade nova, ainda teriam que custear a locomoção da unidade antiga até a reciclagem. Depois Julieta fez a cotação de quanto custaria comprar peças recicladas e percebeu que também estava muito além do orçamento do casal.
Arthur sugeriu que talvez não precisassem tanto de uma unidade doméstica assim. Julieta insistiu. Sabia que o antigo serviço da unidade sobraria para ela. Decidiram, então que chamariam um mecânico de unidades para consertá-la.
Durante todo o tempo que o casal discutia, a unidade esperava pacientemente pelo seu destino, como um velho na cama de hospital que ouve através do sono enquanto sua família elocubra sobre o melhor fim para o seu corpo. Seria consertada, seria ótimo. Logo poderia reassumir seu posto e seu trabalho, que já estava acumulando.
Na semana seguinte, começaram a usar a unidade como suporte de chapéus. Depois, como mesa para as correspondências. A unidade chegou a ver Julieta com uma vassoura na mão, sem saber muito como manuseá-la. Depois de um mês, o mês que a unidade mais registrou Arthur e Julieta gritarem e gesticularem um com outro, a unidade foi transportada para dentro de um armário embaixo da escada, junto dos patins velhos e da louça que Julieta ganhara da tia e que detestava.
Sozinha e no escuro, a unidade se perguntou:
– O homem do conserto não vem?
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