7.6.15

Buraco

- Ei moça. Mooooça.

Abri os olhos um pouquinho. Não sabia bem onde estava. Tudo ao meu redor era escuro e úmido. A única luz vinha de um buraco lá em cima, bem longe. Ainda dava pra ver o céu branco de poluição e neblina.

- Tá tudo bem, moça?

Me virei, lentamente, me dando conta de toda a dor que estava sentindo. Meu pescoço, atrás da cabeça, minhas pernas. Engoli um pouco de sangue.

A voz que falava comigo era suave, vinha de algum lugar à minha esquerda. Não consegui distinguir nada além disso. Coloquei a mão na cabeça e senti que estava grudento. Não sabia se era água suja ou sangue ou qualquer outra coisa. Preferia não ter que descobrir.

- Você caiu lá de cima, moça. Foi um tombo e tanto. Pensei que tinha morrido.

- Eu não morri? - me forcei a dizer - O que é esse lugar?

- É o submundo.

- Pensei que tivesse dito que eu não estava morta.

- Não, não o inferno - ouvi a voz suprimir um riso - O submundo. O mundo tá lá em cima, ó. A gente tá aqui embaixo.

De repente, me lembrei de tudo. Levantei-me para sentar, sentindo todos os músculos e nervos do cox e das pernas gritarem.

- É mesmo! Eu caí! Eu sabia que nunca deveria andar em cima dos bueiros gigantes por um motivo!

- A gente sempre tem motivo pra tudo.

- Ai não! E justo hoje que eu tinha que ir no banco pagar o cartão atrasado e eu tava na rua só por cinco minutinhos que depois eu tinha que voltar pra casa e terminar meus freelas e minha dissertação e ligar pra minha mãe e ainda nem sei o que fazer para o jantar-

- Bom, aqui embaixo tem uma hortinha. Tô ficando muito bom em culinária vegana crudívera. Menos quando aparece um rato, aí eu sou onívero crudívero.

Houve um momento de silêncio. Imaginei a textura do rabo do rato passando pela língua como um espaguete grosso e peludo.

- A gente tem que sobreviver, né? É muito bom quando cai pipoca também.

- Eu preciso muito sair daqui.

- Ou você pode esquecer seus problemas e ficar aqui embaixo.

- Não. A gente tem que resolver nossos problemas, senão eles resolvem a gente. É o que minha mãe sempre diz.

- Você faz tudo que sua mãe quer?

Achei meu celular na bolsa. A luz me cegou por alguns instantes. Ouvi meu companheiro de buraco gitar também.

- Sem sinal. Merda de Tim.

- Aqui embaixo nenhuma operadora pega. Nem 3G, nem nada. Foi a primeira coisa que joguei fora quando caí aqui.

Finalmente direcionei a luz para meu interlocutor. Parecia um mago, mendigo ou um hippie louco. Talvez fosse os três. Estava sujo, barba e cabelo compridos e despenteados, um terno velho surrado. Parecia perfeitamente feliz.

- Faz tempo que você tá aqui embaixo?

- Eu cheguei a contar 96 dias. Para todo dia que eu tava aqui, fazia um risquinho no chão. Depois, perdi a conta. Foi quando comecei minha hortinha e a me dedicar à meditação.

- Três meses? Faz mais de três meses? Ninguém veio te procurar? Sua família, seus amigos, os bombeiros? Ninguém?

- A polícia vem às vezes. Ainda bem que eu não tenho um colchão, senão tirariam de mim. Eles vêm, fingem que não me vêem e vão embora. No começo achei que fossem me ajudar, depois tive medo, hoje só fico feliz que me deixam em paz.

- Você não sente falta do mundo lá fora?

- Não muito. Eu vivia pros outros, sabe? Trabalhando pros outros, gastando dinheiro pros outros, deixando os outros felizes. Esquecia de mim. Não sei porque corria tanto, me esforçava tanto. Eu não precisava de nada daquilo. Agora sei que só preciso estar aqui, com minha hortinha.

- Sempre quis uma horta. Não cabe no meu apartamento e eu nem tenho tempo pra cuidar.

- Se quisesse mesmo, você criava tempo.

- E nem adianta. O apê não é meu. Nem sei onde vou estar morando ano que vem.

- Aí é só escolher um lugar que cabe sua horta. O que mais você queria fazer que não dá tempo?

- Queria viajar o mundo. Fazer um mochilão pela América Latina antes de mudar definitivamente para a Europa.

- É, viajando não dá pra carregar a horta. Tem que escolher um dos dois.

- Tem tanta coisa pra ver no mundo e a gente aqui, nesse buraco.

- Fale por você, esse buraco é meu mundo inteiro.

- Você nunca tentou sair daqui?

- Pra quê?

- Pra... Sei lá, criar uma horta maior, abrir um food truck orgânico.

- Viu? As pessoas lá de cima só pensam em dinheiro e em trabalho. Pra que quero fazer parte disso? È muito melhor ficar aqui meditando, sem ninguém me cobrando o dia inteiro.

- Preciso muito sair daqui.

- À vontade.

Ouvi-o se mexer ao meu lado e começar a meditar.

Tinha que haver um jeito de sair daqui. Tem que ter.