O inspetor foi na frente. A cada passo que davam, as tábuas de madeira rangiam como portas em dias de inverno.
- A gente não deveria estar aqui... - falou Safira devagar. Os demônios subiam pelas paredes e balançavam-se pelos fios elétricos onde deveriam estar os lustres.
- Não, mas este é meu trabalho - respondeu o inspetor em tom de zombaria - Aliás, se encontrarmos algo, será para o bem da sociedade. Se não encontrarmos, ´continuaremos procurando.
Ele soltou uma risada ensaiada e seca. Safira não achou graça.
Havia vários candelabros com velas usadas, embelezadas pelas gotas de cera escorridas. Andavam pelo corredor escuro, cada um com uma lanterna, abrindo brechas no breu.
Um demônio com dentes especialmente agudos, orelhas muito pontudas e olhos sem íris tocou no ombro de Safira e apontou para uma porta. Ela andou até lá e tentou abri-la. Estava trancada.
- Acho que é por aqui - falou para o inspetor.
- Como você sabe? - peruntou o outro duvidoso.
- A porta está trancada. Você trancaria uma porta na sua própria casa se não houvesse algo a esconder atrás dela?
Ele concordou com a cabeça e chutou a porta para abri-la. Abriu-se. O cheiro de jasmins era mais forte que nunca.
Safira estremeceu com a lembrança. Sentiu-se doente e correu para o banheiro vomitar. Mesmo em sua mente igualmente doentia, ela nunca conseguiria fazer o que Pedro fizera.
Safira soltou um grito. Encostado na parede de trás do quarto relativamente pequeno estava improvisado um oratório. Havia muitas jasmins murchas e velas acesas, brancas e grossas, corroídas pela própria cera. Seria até bonito, não fosse o santo em tamanho real.
Sobre a mesa de madeira tosca, jazia nua e apodrecendo o corpo de uma mulher. Em seus cabelos estava arranjada uma coroa de jasmins, cuja brancura era acentuada pelos cachos negros. Sua pele, outrora dourada pelo sol, estava desbotada e azulada, de tão alva. Cravado em seu esterno, estava um punhal. Era Amélia.
- Achou o que procurava, inspetor? - falou uma voz ácida de trás dos dois.
Safira virou-se devagar, recuperando-se do choque inicial e reconhecendo a voz.
- E você, sua traidora? - perguntou Pedro ao vê-la face a face - Trás a polícia para minha casa?
- Pedro, como você pôde?! - indagou a menina aos prantos.
- Pergunta-me? Foi você que me motivou!
- Ah! Você a amava tanto!
- Amava, sim - respondeu, mais suavemente - Mas ela não me quis - abriu um sorriso sutil, mas aterrorizante e continuou:
- Então a tive de qualquer jeito.
Ele riu sadicamente. Depois fixou o olhar em Safira e falou, com voz grave:
- Agora é sua vez.
Um segundo punhal brilhou em sua mão. O inspetor atirou, acertando a bala na mão que segurava a lâmina. Pedro gritou, agarrando o membro ensangüentado e deformado. Safira soltou um gemido de compaixão e correu até o amigo.
- Pedro! Ó, meu amor!
O garoto a jogou para o lado com violência. Os olhos cheios de ódio e angústia, pegou a faca novamente e iniciou uma corrida atrás do inspetor. Este, por sua vez, liderou a maratona seguindo pela porta pela qual entrara. Depois disso, foi sucedido uma tentativa de tiros sangrentos e houve a queda de algumas prateleiras, na cozinha, derrubando panelas, fazendo muito barulho, nos quartos, levando livros empoeirados ao chão, até chegarem ao hall de entrada.
- É aqui que tudo isso termina, seu vagabundo – xingou o inspetor com o revolver entre os olhos de Pedro. Ambos estremeciam, o segunmdo mais que o primeiro. Pedro respirava com dificuldade. Engoliu em seco.
- Está com medo agora, Pedrinho? - perguntou o inspetor, afundando o revolver na testa do rapaz.
O garoto recompôs-se, deu um sorriso amargo e respondeu:
- Medo? De você? Eu sei quem você é. Você é igual a mim. Idêntico. Sua pomba existiu também, mas você não foi atrás dela. Eis a diferença. Você é fraco, incompetente. E agora tenta amenizar a sua dor acabando com sonhos de vencedores como eu.
- Ela nunca foi sua.
- Foi sim, várias e várias vezes - o sorriso alargou-se - Lembro de todas as vezes que seu cadáver gemeu sob o meu.
- Louco! - gritou o inspetor, tremendo.
- Não deixa de ser verdade - falou mais seriamente. Rindo novamente, completou:
- E veja só, senhor! Estou melhorando! Sabe... O melhor jeito de chegar à cura é admitindo que está doendo.
Pedro riu insano, como um palhaço num verdadeiro espetáculo de horror. Safira observava de uma certa distância, enlouquecida pelos caninos que só ela enxergava no sorriso selvagem do garoto. Pedro agarrou facilmente a arma do inspetor e jogou-a para longe.
- Eu não gosto de armas de fogo - falou calmamente - Falta-lhes uma certa classe, não? - e pegando uma espada presa à parede, acrescentou:
- Nada como uma arma genuína. Que corta e mata aos portos. Tome minha mão, mas eu quero o seu pescoço.
A espada estava à garganta do inspetor, a mesma já tingida por um filete de sangue, que crescia à medida que a lâmina era afundada. Este processo era vagaroso e dolorido.
Safira lembrava-se de que dali em diante tudo aconteceu muito rapidamente. Só sabia que tinha pulado para salvar o inspetor, deixando Pedrinho no chão, inconsciente. Em seguida chamou a polícia. O inspetor achou isso vergonhoso, ter de chamar outros policias, mas ela sabia que ele realmente não estava disposto a nada. Talvez fora o fato de Safira ter salvado sua vida que fez o inspetor tornar-se tão gentil de repente.
Era impossível negar, entretanto, a mágoa da menina. Pedro era muito mais que um amigo, um confidente que seja. E ela havia ficado muito chateada com tudo isso. Certamente queria que Amélia desaparecesse, mas nunca daquele modo. Ela afogou os olhos nas mãos, apertando-os. Chorava. O Dragão miou de novo, tentando consolá-la.
Levantou-se do chão frio do banheiro, olhou-se no espelho e lavou o rosto, decidida. Haveria de contar à policia o que aconteceu. Exatamente como aconteceu. Com o intuito de levar um pouco da culpa e lavar a alma.
Essa semana teve encontro de bandas no colégio. Foi muito bom.